
Paulo Santilli
Texto cortesia para a nossa exposição coletiva realizada no Pitzer College em 2013, na Califórina, EUA.
I. De predadores a presas
“Passa pimenta nos olhos !” – diziam os antigos -, contam ainda hoje os mais idosos habitantes do lavrado e das serras de Roraima, sobre como eram instruídos a lidar com o gado bovino, que havia sido introduzido na região pelos colonizadores portugueses ao final do século XVIII, e tendo se espalhado, proliferado solto pelos campos naturais desde então, passava a ser arrebanhado pelos migrantes nordestinos que começaram afluir no século seguinte. Contam ainda hoje os índios que ouviram de seus ancestrais, que ao se depararem com os enormes animais, -nem gostavam de olhar o gado! Prá olhar eles tinham que passar pimenta nos olhos deles prá poder olhar aquele bicho.
Passar, esfregar pimenta nos olhos é o mesmo procedimento instado pelos xamãs – piasán Makuxi – para se olhar o inaudito, sejam as frutas exóticas, manga, laranja, os bovinos trazidos pelos colonizadores, ou os vultos dos mauari, os seres que vivem nas encostas das serras, podem adquirir qualquer forma e ‘encantar’ os humanos. Dizem eles, os piasán, aos que saem da aldeia – esfrega pimenta nos olhos para não cair doente -, para não deixar-se ‘encantar’, fascinar, com a eventual aparição de figuras de grandes animais com as quais costumam se revestir os mauari para atrair e roubar as almas – stekaton – dos humanos.
Os relatos orais transmitidos pelos mais idosos sobre a atitude cautelosa de seus ancestrais diante do surgimento dos bovinos vem contrastar nitidamente nos dias atuais com a secular vivência acumulada pela população indígena com os rebanhos que proliferaram na região. Com efeito, desde a decadência do extrativismo da borracha ao final do século XIX e início do século XX, quando começaram a instalar-se na região os migrantes com o apossamento de cabeças de gado que vagavam pelos campos naturais do rio Branco, instituiu-se o costume de tomar nas aldeias crianças índias para serem criadas junto às famílias adventícias e assim aprenderem as lides próprias da pecuária. Tornou-se muito freqüente nas trajetórias de vida dos índios mais idosos na região, o convívio prolongado por anos junto às famílias dos pecuaristas em que realizavam as tarefas rotineiras nos criatórios de gado. Tornou-se muito freqüente também a prestação de serviços dos índios habitantes nas aldeias – de plantio, corte de madeira, etc. – aos pecuaristas que vieram estabelecer-se nas imediações, apossando-se das fontes de água e extensões das pastagens nativas para a expansão de criatórios privados. A pecuária extensiva praticada deste modo, com o envolvimento da população indígena, expandiu-se consideravelmente por décadas – em que os índios habituaram-se não apenas com as tarefas e serviços afetos ao gado, mas também com os instrumentos, apetrechos, linguagens e formas de socialidade dos migrantes adventícios -, até culminar ao final do século passado em conflitos endêmicos em torno da disputa pela terra opondo índios e fazendeiros.
No contexto das lutas pelo reconhecimento dos direitos territoriais indígenas, um fator da maior relevância para a mobilização das lideranças locais e mesmo da população das aldeias, como também para a estruturação das entidades que vieram reivindicar a representação da população indígena, consistiu, certamente, no manejo, na posse e na propriedade do rebanho bovino. Retomando as origens comuns da concepção de uma ocupação territorial com limites fixos, “de rio a rio”, e das denúncias de violências praticadas contra os seus habitantes pelos fazendeiros e garimpeiros que vieram se apossando das terras por eles ocupadas tradicionalmente, ocorreu também nos anos 1970, em meio aos debates entre lideranças locais indígenas reunidas nas assembléias anuais de tuxauas, o aguçamento da consciência do teor clientelístico das relações estabelecidas com os posseiros adventícios, e portanto da necessidade de sua reversão. Neste contexto em que se fazia imprescindível romper as relações de prestação de serviços em troca de artigos industrializados que engendravam o endividamento e a submissão da população indígena aos desígnios dos posseiros, foi-se tecendo os contornos de um projeto para viabilizar a aquisição de gado para os índios de modo a tornar mais visível e legítima, aos olhos da sociedade nacional e regional, a sua ocupação nas áreas do lavrado e das serras vis á vis com os fazendeiros.
Uma iniciativa decisiva adotada à época nesse sentido pela Diocese de Roraima foi implementar o chamado “projeto do gado”, que consistiu basicamente em angariar fundos nas regiões de origem da Ordem da Consolata, sob o apelo “Una muca per l’indio”, e com os recursos assim obtidos investir na aquisição de rebanhos bovinos, que então passaram a ser cedidos, com a mediação dos tuxauas, em sistema de rodízio por cinco anos a cada uma das comunidades indígenas. Além do suprimento alimentar alternativo aos índios num momento de ruptura das relações clientelistas, o objetivo expresso do projeto era promover a ocupação dos campos naturais com a mesma visibilidade dos fazendeiros, tornando assim os próprios índios pecuaristas.
No entanto, se por um lado o projeto supostamente dotava de legitimidade a ocupação indígena na região de campos naturais perante a sociedade regional e nacional, onde era considerada “naturalmente vocacionada à pecuária”, por outro lado suscitava questionamentos e perplexidade entre os grupos locais quanto ao engendramento de relações hierarquizadas com a injunção de categorias como vaqueiro e capataz, tão estranhas a povos eminentemente agricultores, caçadores, pescadores e coletores. Suscitava questionamentos e perplexidade também devido ao previsível agravamento da invasão das roças pelo gado e a decorrente necessidade de construção de cercas, seccionando o espaço.
Com efeito, não foram poucos os impasses surgidos nas aldeias com o inconformismo pelo afastamento do convívio corriqueiro com os parentes mais próximos àqueles a quem se atribuiria a incumbência de pastorear o gado, e portanto se lhe imporia o isolamento para vagar diuturnamente pelos campos; como também não foram poucas as reuniões da população das aldeias e das respectivas lideranças para debater a escassez da caça e, mesmo, a desaparição de grandes mamíferos com a expansão que se promovia da pecuária numa escala sem precedentes. Chegou-se a recorrer até mesmo à metáfora de ‘semente’ para designar o lote de gado cedido às aldeias e incutir em seus habitantes a ideia de que não deveria ser caçado, nem simplesmente comido, mas antes pastoreado e cuidado. E mais, a despeito das adversidades e tantos outros problemas surgidos na sua implantação, o projeto foi seguido pela FUNAI nos anos subseqüentes e amplamente difundido entre as comunidades indígenas em diversas regiões, inclusive nas florestas.
II. A raposa e as vacas
Em abril de 2010 o Conselho Indígena de Roraima promoveu uma festa na aldeia Maturuca em comemoração a ratificação dos procedimentos administrativos adotados para a regularização da Terra Indígena Raposa Serra do Sol pelo Supremo Tribunal Federal e convidou os seus habitantes e a todos os que de algum modo participaram de tais procedimentos, que se arrastaram por mais de três décadas, a compartilhar do churrasco feito com o abate de centenas de reses.
A celebração adquiriu naquela ocasião, com a presença do Presidente da República, múltiplos significados, dentre eles, de modo mais evidente por dois feitos, quanto aos propósitos e a forma da celebração: a conclusão de uma etapa na luta pelo reconhecimento dos direitos territoriais com a sentença expedida pelo Supremo Tribunal Federal ratificando os limites demarcados da terra indígena, e, feito conexo, expresso com o próprio mega churrasco, que bem emblematizava a propriedade dos índios do maior rebanho bovino em Roraima.
De fato, a história de ambos os feitos se confunde, são ambos indissociáveis, não se poderia entender uma separada da outra. Mas eis que a oportunidade em que se celebra o marco de conclusão de uma etapa na luta pelo reconhecimento dos direitos territoriais indígenas, até mesmo pela própria forma que se conferiu à celebração, não é menos propícia para a reflexão e o questionamento das relações sociais e práticas econômicas que se estabeleceram ao longo das últimas décadas em nome da bandeira de luta maior, pois que sobre ela inflectiram, como é o caso do chamado “projeto do gado”.
Eis que no presente momento, superado seu principal objetivo, o de propiciar o reconhecimento da ocupação territorial indígena no lavrado e nas serras – ou ao menos em parte, com a regularização da TI Raposa Serra do Sol –, importa atentar para as suas conseqüências em diversos planos: o projeto do gado, até mesmo pelo êxito, talvez tenha acarretado conseqüências das mais relevantes, porém ao seguir idéia análoga à de tantos outros, enseja questões semelhantes. Houve tempo em que se propagava que por sua riqueza mineral, ‘a vocação natural’ da região seria a exploração garimpeira de ouro e diamante; assim como houve ocasião em que se alardeava que devido a pastagens naturais, a região estaria fadada à pecuária extensiva de corte; e mais recentemente, houve mesmo oportunidade para que se atrevesse a sentenciar que em razão da composição dos solos e do relevo, a região estaria ‘naturalmente’ vocacionada à monocultura do arroz – mas lembremos -, tudo isso para justificar sua invasão por posseiros! Uma vez superada tal questão, ou, ao menos com o desintrusamento dos posseiros nos limites das terras indígenas regularizadas, cabe agora interrogar as relações e práticas nefandas que se procurou extirpar com a retirada dos invasores. O que é feito da degradação ambiental, social, sanitária… causada pelo garimpo? Da exploração do trabalho exacerbada através do endividamento compulsório ocorrido com a expansão da pecuária? E da violência e devastação perpetradas pelo avanço da monocultura?
Não seria este o momento pertinente para retomar tantas questões negligenciadas no calor dos embates políticos passados, como, por exemplo, a questão das fontes de água assoreadas pelo gado, que já se pensou em preservar selecionando e instalando bebedouros apropriados? Das matas e buritizais definhantes, que se cogitou revitalizar interditando a extração de madeira e palha pelos regionais? Do escasseamento dos animais de caça, que se propôs reverter com a criação de áreas de refúgio, entre outras?
Por certo, não seria razoável pretender agora cobrar dos índios todo o passivo ambiental causado pela exploração colonizadora, a começar da extinção dos quelônios que povoavam as areias do rio Branco no século XVIII, nem muito menos pretender pressionar os índios para apresentar aquele ganho, aparentemente fantástico, dos que propalavam a ‘vocação natural’ da região para o garimpo, para a pecuária, ou a rizicultura e acabaram promovendo a sua devastação. Nem mesmo, após trinta anos de lutas pelo reconhecimento de direitos históricos, insistir ainda em mostrar com o gado a ocupação exercida pelos índios: o atual ordenamento jurídico do país dispensa qualquer apelo à mutação em vaqueiros ou produtores rurais, dos procedimentos requeridos para o reconhecimento oficial de direitos territoriais.
Cabe agora invocar o preceito xamânico de esfregar pimenta nos olhos e não se deixar levar, nem muito menos pretender incitar os índios aos encantos simulados com o brilho dos cristais nas encostas das serras, com a silhueta dos grandes animais multiplicados indefinidamente nos campos naturais, nem com os pequenos grãos infestando as imensas planícies sulcadas com máquinas agrícolas: basta reconhecer aos índios sua alma própria, sem pretender roubá-la para metê-la nos descaminhos de um aparente/prometido progresso que já revelou seu poder de devastação.


