Abril indígena 2020 – O privilégio de ouvir


Vou viver bem e sem culpa, até onde der esse aqui. Não mais por mim, agora pela juventude que antes é e seguiu viva, neu.

Todos os dias, quando estou dormindo em minha casa de vidro, uma sabiá vem me acordar. Ela pode só estar ali a acontecer, mas tomo para mim aquela louvação. Ela chega, ou surge, lá pelas quatro e pouco da manhã. É no tempo dela onde jogo o meu e busco levar o seu. Fica pousada no telhado da vizinha virada para onde o sol se põe, parece que depõe. De fato, ela compõe. É de onde a olho sentado também e passo e digerir meu sonho transmutando em oração. Dalí posso escolher e eu sempre escolho viver, teimar em viver, desadormecer.

Durmo sempre com um copo d’água ao meu lado. É meu legado, meu lago onde banho minh’alma, meu cardume interior. Ela canta tão lindo! É no sereno que canta, certamente suas penas, orvalhadas. É um concerto de bilhares, zilhões. Artistas que se conversam do mundo todo pois sempre há vento para espalhar. E se chove, há chuva para levar e lavar o que quer que seja que parece não estar andando muito bem. O que não anda muito bem deve voar, o que não voa deve escorrer, deslizar. Ir de algum modo é a lei da natureza, essa coisa que não tem palavra ou descrição assim como a vida ou a saudade.

Já não me pergunto mais a razão das coisas, nem busco buscar tradução. Tudo acontece mesmo em duplicidade ou seria em trio amenidades? Saber e ver que ao lado os ratos correm nos galhos, caramujos de outro mundo deslizam silenciosos. Não, eles também cantam e amam. Eles também vivem e morrem deixando suas conchas espirais e dentro o infinito. Dizei-me sabiá pra não chorar, dizei-me para cantar. E como alcanças em tons a harmonia é de se deixar fazer. Fazer, fazer até caber. É lindo teu copiar e se ganhaste o dom o tens que compartir, parir antes de ir.

Eu vi. Por isso conto pra ti, pra tu contar pra mim, um pouco do teu sentir.
Vivo bem até aqui!

Gratidão universal.

Foto: Sabiá Laranjeira por Marcelo Camacho.