ESTÓRIA PRA BOI DORMIR


ESTÓRIA PRA BOI DORMIR

Veio do alto, não sei se do céu, parecia, mas não sei. Criança, uma forma parecida com criança? Foi no pé que dava o amor e lá tinha muitas coisas, mas não havia nenhuma com o nome amor. Correu, no caminho cortou lenha, jogou assim para pegar na volta. Sabia, ninguém levaria sua lenha. Seguiu rio acima, pisando pedras proeminentes. O brilho não era mais de diamantes e sim do alumínio dos cascos das canoas, do auge garimpeiro. Tudo seco, a beleza agora era negra, cinza, poeira e desolação, mercúrio. Correu, flechou o parente, olhou e não teve lágrimas. Nasceu mais um, caiu assim na folhagem e se enterrou ali mesmo. Brotou algo no lugar e todos esperavam a esperança, mas as folhas tinham espinhos, típicas das terras áridas. Pelejou, fez uma ferramenta, de lá saiu uma música, do toque um ser surgiu o engoliu. Andou na barriga do monstro, mas não era monstro era só outro valor atribuído, outro equívoco. Não teve apego. Sem saudade não há memória. O que há para comer? Nada. Então correu mais um pouco, achou uma folha, sorveu até a cura virar veneno e, de novo, entrou no transe. Pariu, já tinha corpo, gerou e soltou no mundo. Ele me convidou: vamos brincar de pensar. Regra número um, não pode se ofender. Vai doer, mas só vale aprender. Traz sua caixa de coisas. Me dá. Eu disse: toma. Me passa a sua. Ele me deu um olho, arrancou o olho e me deu enrolado assim numa folha. Abri e lá não tinha nada, o olho estava no lugar. Perdi, pensei. Ele ouviu e me disse, parente, quem são vocês makuxi? Leia, tá tudo aí na caixa. Agora vire, é minha vez de bater. E eu disse, pensando, você me enganou. Venha aqui, deixa eu ver esses olhos que você já me deu. Arregalando os olhos dele, joguei pimenta jiquitaia. O parente ensaiou um choro. Eu li a regra número um novamente. Ele foi caçar porcos. Eu disse: calma parente, me dê aqueles ossos da cabeça que você jogou e não fez colar. Agora, entendo o sentido dos dentes. Bati as caveiras da cabeça de queixada uma contra a outra e os porcos vieram das bandas do norte, da borda da floresta, que agora era cidade. Vieram e pousaram. Os porcos eram gente e disseram: parentes, esperem, vamos dormir, amanhã, vocês comem a gente. Mas não deu tempo. As mulheres cantavam na madrugada, mas madrugada era só um valor a mais atribuído; uma mania taxativa de fatiar o tempo. Ele se afastou, juntou as penas de cujubim, mutum, arara, borboleta, beija flor, avião e fez um outro ser. Todos queriam ir, mas ele disse: fiquem aí, eu ainda não conheço esse povo makuxi. Mas ele conhecia muito bem, estava só brincando de pensar, e imaginava como seria não ser makuxi. A lua entrou na brincadeira. Desceu bem baixo, mordeu beiju, molhou na damurida e espirrou. Assim nasceu pimenta em toda a extensão, em ambos lados do rio. As pimentas fizeram uma reunião, reivindicaram panelas de barro. Foram chamar vovó, que dormia na cápsula depositada na nuvem escura que passava para derreter, lá na frente, em chuva ácida. Vovó desceu e o barro já estava pronto. Vovó babou a ponta do dedo e tocou no barro, mil pulgas pularam como pipoca e, da coceira, da poeira da pele coçada, surgiram as panelas de barro. O coração pulsava, bombeava às células as mínimas informações genéticas, coisas cobiçadas, de alto valor intergaláctico. Chegavam aos milhares. Aprenderam de fato o sentido da gratidão. Traziam coisas, coisas sagradas, preciosas. Depositavam aos meus pés como se fosse seus chefes. Eu dizia: saiam todos daqui, eu não sou o chefe de vocês. No novo tempo, não há chefes, nem certificados, nem pílulas contraceptivas. Agora, ele sabia, andava de olhos vendados na plena luz. Espinhos se dobravam, curvas alinhavam, buracos nivelavam, feridas, nem cicatrizes. Jacamim chegou com miçangas minúsculas nas finas pernas. Ficou assim acocorado, só olhando mesmo. Não era arte, era complemento, completude, exatidão. Bebeu tucupi puro, arrotou, apanhou ingá, estava verde, cuspiu. Era só pra limpar os dentes, pois ia ter festa. Já era tarde, o mundo dos ignorantes tardava. O atraso, o que era o sentido do atraso? Entre ele havia o puro e pureza não era exatamente o que cabia em conceitos. A festa era silenciosa, no fundo da rede, no íntimo, uma festa particular. Gozou, do gozo, sorriu e alardeou. Mataram-no, pois não era permitido felicidade. Chamou o macaco guariba, montou nas costas dele e foram tricotar, fofocar mesmo era o que queriam. No caminho, se distraíram e não fazia mais sentido o tricô. Bordar, talvez, busquem os teares. Correram, voltaram com as varas lizas, armaram e jogaram cores nas fibras. Fibras ópticas, coisas de um passado remoto. Ao relento, era sereno, serenava luz, pó de diamante. Foi pra terra onde os brancos. Era só pra aprender a ler, mas, ele, tocou violão, tomou cachaça, caiu no forró. Maliciou-se, fumou ervas, cheirou outras essências. Na viagem, caiu de volta em casa e uma boa paulada lhe trouxe a si. Estava de fato em casa. Agradeceu com outra paulada. Logo formou-se uma fila para levar pauladas dele. Suas pauladas eram doces, açúcar da cidade. Escrevia, mas não era escritor. Lia, mas não era leitor. Orava, mas não tinha deus. Foi pro terreiro jogar milho aos pintos. Mulheres cruzavam o ar com seus jamaxins. Charmosas sorriam para ele, mas eles anestesiou todas elas, viraram pedras, brincou de Makunaima. Foi vender seus feitos, botou altos preços, fez magia, compraram sem piscar. Ganhou dinheiro, ganhou diversos mundos. Era besta, voltou pra dividir. Os outros eram sacanas, tomaram todos seus bens e ele somente sorria da triste enganação. Agora estava na beira, viu um bebê banhar o outro e, sem cerimônias, vestiu o outro ser e foi pro mundo das águas. Respirou, não era pra respirar e, novamente, ele viu nascer o impossível. Viu todas a suas mães, elas tiravam leite das vacas. Não o deixavam mamá-las, eram demais vaidosas. Foram no posto buscar remédio, estavam viciadas em vacinas. Colecionavam agulhas, coisas coloridas. Furavam os dedos e de lá saíam caracóis, casas nas costas; hora de mudar. Amanhecia e ele a digitar, estava em alfa, bebeu mais ainda caxiri. Raspou mandioca, peidou e nem fedeu. Foi descansar, recebeu massagens nos pés. Substituíram seus carrapatos, aqueles já estavam velhos. Queriam mesmo um chefe, havia de ser ele. Mas ele era preguiçoso, terceirizou o serviço. Reinou, no final, sem nada fazer. Como podia? Foi na missão na calada da noite, trocou os versículos da bíblia e os missionários perderam sua razão. Todos almoçaram missionários e os ossos viraram caldo. Depois, peneiraram os ossos em peneira de arumã. Amarraram juntos os ossos, dedos mindinhos viram colares, e foram. Depositam as urnas no local e, agora, queriam um presidente. Foram se cadastrar. Nos programas sociais, seus nomes estavam na lista. Mas eram nomes de portugueses e seus olhos se enganaram. Voltaram, cruzaram a avenida. Um se atrasou, o carro bateu e, lá mesmo, ficou. A gordura virou asfalto, o cheiro dobrou as esquinas. Entraram nos guetos, encontraram os africanos e com eles foram pra beira do mar. Lá, apontaram assim e surgiu uma grande ubá. Entraram, de manhã, estavam do outro lado. O chefe negro tinha imensos dentes, de porcos, os avós dos javalis. Deram meia volta no pescoço da girafa e apontaram por norte com manadas de cavalos selvagens. Boiaram no Surumu a ponto de ainda ver a divisão celular. Chegaram mais presentes, agora carne moqueada, e aquele mundo de floresta já não existia. Tinha um casamento, não tinham fraque, ficaram de fora, viraram ornamento. Foram dados de presente aos noivos inférteis. Clamavam por justiça, à toa. Encontraram outros povos, armaram a tenda, queriam ver teatro, e viram no fundo da arena do Caracaranã. Tinha muito caju, mas não tinha makuxi pra fazer mocororó. Foi então que se viu, no espelho d’água, e lembrou, sim, era makuxi. Mas faltava a cuia para servir. Foi na fazenda cuieira, roubou um bezerro, bebeu o sangue. Viu algo assim a se mexer. Puxou a folha e era a inveja adormecida. Tapou os buracos do nariz dela com tabaco, ela explodiu a gargalhar. Com ele ninguém podia, não tinha passado, nem rastro deixava, e condenou todos os ataques de canaimé. Voltou com as cuias, soltou o gado, desfez as fazendas, queimou os currais, as pontes, as famílias sem tradição que empesteavam a paisagem. Devolveu o lugar, foi o primeiro. Acreditava na educação, pelos exemplos, pensou, eles vão prosperar. Mas que nada, mudaram alguns pra cidade. Agora, moravam em bairros e tinham piercings no umbigo. Dançavam a dança do ventre. Estavam felizes e plenos no escambau do mundo além tropical. Mundanos. Mudamos. Na privada, não tinha papel apenas jornais locais e livros sobre Papillon, Rondon, Koch Grunberg e um inacabado chamado Antes do céu cair. O cachorro latiu. O satélite caiu bem assim, abatido. Chegava o tempo da grande guerra, pra restabelecer a paz. Antes, veio o inverno, molhou a pólvora e ele teve a resposta. Recobrou a lucidez e foi posto na catequese. Mentiu, roubou a hóstia, bebeu o vinho, comeu o padre. Foi embora mais uma vez. Decidido a não mais voltar, não se despediu, apenas sumiu no campo de caimbés. Estava exausto, queria presentear seu olhos. Subiu pra copa das árvores. Pediu um drone e veio mesmo foi o urubu e, novamente, o levou pro céu. Sabia, já havia vivido aquilo, mas foi, mesmo assim, era de ir. Apertou o terceiro andar, queria pegar umas coisas. A TV estava ligada, lá, ele se viu. Parou, puxou um fumo e desligou o aparelho. Tudo mentira, riu, esse povo não sabe nem brincar.