Jaider Esbell – Artista


Dia 06/12 às 16h na 32å Bienal de arte de São Paulo.
Instalação A OCA de Bené Fonteles em CONVERSAS PARA ADIAR O FIM DO MUNDO
A minha ideia de mundo e a minha relação com a arte é algo que construo desde que tenho memória, a primeira infância. Eu sou Makuxi, povo do tronco Caribe que “estacionou” nas imediações do Monte Roraima, na tríplice fronteira, a Amazônia Caribenha. De fato o povo Makuxi nunca parou e deve seguir a eterna andança até que se ache em tudo que se considera alcançável. Dizem os mitos do nosso povo, viemos também do centro da terra e lá tem muitos de nós, ainda. Nossa população de mais de 20.000 pessoas que se auto declaram vive em diversas realidades e configuram diferentes paisagens socioculturais, econômicas e espaciais. Os Makuxi estão segmentados em várias organizações de classe e não há unidade absoluta de posicionamento político como qualquer outra sociedade definida. Eu respeito o CIRR como a maior organização indígena local. Por extensão considero as demais organizações que fazem parte do movimento indígena pioneiro em Roraima autênticas. A grande maioria dos Makuxi vive na Raposa Serra do Sol, reserva de 1,7 mil hectares homologada em 2009 e devolvida também aos Wapixana, Taurepang, Ingarikó e Patamona. Após mais de 40 anos de luta política sistemática contra garimpos, bares, vilas, fazendas, hidrelétricas, monoculturas e todo tipo de invasores, os nativos ocupam suas terras ancestrais e nela buscam viver como bem entendem. Os Makuxi vivem tanto na reserva como nas cidades sedes dos municípios, na capital Boa Vista e em outros estados e países e todos tem suas devidas importâncias no contexto geral de povo. Eu nasci na região da Raposa e meu avô foi criado como menino de fazenda, na modalidade Convivência Pacífica. A convivência pacífica é um artifício de inverter realidades, quando o colonizador conclui pelo colonizado que ele é mais bom que ao contrário. Outra parte da família ainda vive nas comunidades. Em outros momentos outros trabalharam em diversas frentes de serviços inclusive garimpo, mas, em resumo, somos agricultores, pescadores, coletores natos. Menino de fazenda é uma espécie de faz de tudo. Todos os tipos de trabalho braçal e sem limites de pesos, horários e responsabilidades é obrigação dele, o que eles, os exploradores chamam de caboco. A convivência pacífica é o argumento do invasor para tentar dizer que a relação indígenas/exploradores era saudável, consentida e até desejada. O que hoje se conhece como trabalho escravo ou trabalho infantil foi comum como ainda é nos mais remotos sítios da vasta paisagem capitalista. Fomos, de certo modo, raptados da aldeia mas a cena de um pai indígena entregando o filho ao fazendeiro aparece isolada quando de fato não está. A grande tragédia pode nunca ser totalmente interpretada pois ela é diversa e cada família, cada comunidade e cada indivíduo tem uma experiência pessoal e coletiva com o processo histórico maior. Temos uma certeza, nunca sairemos do campo das interpretações, por opção e por sabedoria evitamos voltar a sofrer expondo-nos ao julgo pesado da justiça maior, cega e (ab)surda. Cresci entre a comunidade e as vilas, fui vaqueiro ainda criança e vivi nesse pouco tempo de vida sucessivas conquistas por mera insistência e rompimentos. É importante relatar que os Makuxi, que também vivem na Guiana e na Venezuela, especialmente no Brasil, são em boa parte, criadores de gado. Aqui outro ponto de parada; explicar talvez seja preciso para balizar o contexto maior e não exatamente para se justificar. São criadores bem sucedidos e quando o assunto é ser autossuficientes, isso não quer dizer que sejam ruralistas. O manejo veio com a prática, o vaqueiro makuxi foi ainda criança para a fazenda, foi levado e aprendeu a lida, retornou pra cuidar do rebanho da comunidade em outro momento. A comunidade é uma organização constituída por uma ou mais famílias cruzadas, um sistema que se mantém em si em constante contato com o externo. Importante conhecer que a adoção da cultura bovina e equina, foi uma estratégia de sobrevivência coletiva, pois a regra coronelista à época, ditada por fazendeiros em sua maioria de origem nordestina com apoio do estado, era expulsar os indígenas para a Guiana ou ilhá-los no topo das montanhas para deixar livres os campos naturais para a expansão de suas fazendas. Diziam eles: quem não tem gado, não tem direito a terra. A minha arte nasce disso, dessa complexa mistura de realidades e fantasias, um palco belíssimo de natureza e violência, mito e crua realidade. Eu busco enxergar além fronteiras, busco alcançar uma visão extrapolada para além dos limites geográficos e da geopolítica dominante. Não há domínio nem recorte quando tratamos com arte a realidade. Quando ainda criança quis ser artista queria evidenciar os mitos, logo que alfabetizado em casa, por minha mãe e irmãs, vejo que o mundo não é tão maravilhoso, vi que a violência que os makuxi sofriam na prática, era uma prática global generalizada. Vi que havia dois lados e no meio o silêncio dos que gritavam por respeito e dignidade. O mundo é tornado cruel pelas pessoas. E, ser bom ou mal é meramente uma ótica não exatamente espacial, mas de afinidades por interesses. Assim, ao sair cada vez mais da zona das aldeias e fazendas, fui ampliando minha visão de mundo. Fui sentindo aos passos dados à aventura do encontro com a grande cultura, a cidade, a escola e a religião antes da espiritualidade, os degraus para uma talvez consciência, construída por heranças e influências. É necessário falar que o povo Makuxi é guerreiro em sua trajetória. Por liderar antes com guerra depois com política outros povos chegando a líderes do movimento indígena brasileiro e influenciar a América Latina e o mundo é para falar de algo maior com exemplo, com evidências. Seguimos abrindo portas acreditamos. Mesmo que muitos de nós mesmos trabalhem declarados ao propósito contrário. Os povos originários nunca foram uma unidade mas há unanimidade quando a razão é existir em suas identidades coletivas próprias. Quando se percebe que as guerras entre os povos eram aberturas para o extermínio pelo colonizador, houve, em parte, unidade. Nessa construção sobressaem-se relações que haverão de se perpetuar pois a guerra é mesmo do homem e a política reforça, sustenta. A minha arte não é reprodução de grafismos, minha literatura não copia os mitos e lendas de domínio do povo pois entendo que esses patrimônios são sagrados e só devem ser usados em ocasiões especiais, que não são produtos individuais e não devem ser vendidos para usufruto pessoal. A minha arte é totalmente contemporânea com referência ancestral e se projeta com o uso de todas as ferramentas modernas que consigo manusear. Antes de tudo digo que talvez não haja palavras adequadas, que falta boa disposição ao entendimento mas a força maior do ato feito é o fato, o efeito. A minha arte nem eu mesmo a categorizo. É forte e poderoso o fluxo e o processo rompe as passagens a ponto de não caber na mão exigindo a alma. Extrapolando todo o meu ser o meu trabalho talvez seja necessário para uns, para outros uma vergonha, a outros afronta. Desafiando as teorias, pedindo novos conceitos é insuficiente ainda tudo o que já foi proposto. Sim, sofri discriminação e ainda hoje sofro mas nunca cedi ao convite de esquecer minhas origens. Nunca aceitei o acanhamento, isso que muitos consideram bem caracterizar os indígenas. Sempre parti para o enfrentamento e elegante ou ríspido respondendo meus agressores com a sabedoria que a hora me socorre. Tenho certeza, são instruções de meus guias espirituais, estes que acampam meu sentido depois de limpar meu horizonte de ter sido catequizado e catequizador. Sou Makuxi mas meu trabalho acredito reflete uma necessidade comum a todos os povos nativos. Seja dizer para o mundo que não somos simples, simplistas ou simplórios e que não cabemos e nunca caberemos em categorizações impostas. Que merecemos ser respeitados em nós mesmo, que temos culturas e sistemas próprios em tudo inclusive e especialmente tecnologia e espiritualidade. Que queremos viver em paz onde bem entendermos e de preferência perto de nossos cemitérios falando nossas línguas o que também tentaram matar. Quando eu apareço na cena artística é por meu trabalho de pensador, o desenho é apenas uma linguagem, uma ferramenta de poder para chamar a atenção e daí em diante provocar uma situação de porquês e porquês ou mesmo não. Eu sou parte indissociável da minha arte e quem se arvorou me separar dela não foi muito além exatamente por não achar as entrelinhas. Hoje eu colaboro com a ciência, não sou pesquisador, não tenho instituição, cacique, mas presto atenção em tudo e busco respeitar. Os Makuxi e outros povos por quem sou conhecido me veem como referência, se alegram em mim e também não ficam tão felizes quando eu digo: parentes, isso aqui parece não estar certo! Eu me avalio constantemente para não me deixar incorrer nos mesmos erros do colonizador. Não é desejável que nos tornemos exploradores e que também não permitamos explorações, sejam dos homens, animais ou da natureza em sua completude. O universo indígena, vamos usar esse termo, é o mesmo do homem branco salve as devidas proporções. Também somos aventureiros, céticos para algo e lúcidos de verdades em outros campos. Os indígenas também tem ambição, ganância, fazem guerras, são territorialistas e realmente não vivem em um mundo romântico. É um mundo prático, livre e também cruel que tende a cercear se for balizado por valores morais da massa de conceitos saturados do velho mundo maquiado. Meu trabalho não é mera ilustração para outros discursos, não atende aos anseios da mídia de querer entender o Índio a partir de minha expressão pictórica. Eu talvez venha mais para confundir que esclarecer. Meu trabalho no fim acaba dizendo em outros palcos que o Índio, que requer dos menores males ser chamado de indígena é perpétuo em seu querer, e que a modernidade deveria romper de vez com a ideia romântica de que existe o bom selvagem, pacífico, solidário, cheio de regalias e defensor absoluto da natureza. Não é bem assim. Existem muitos indígenas como brancos, conscientes do cuidado com a natureza como mãe provedora de tudo, outros, nem tanto. Indígenas permanecem em suas naturezas ancestrais, e alguns adotaram em tal profundidade a cultura geral a ponto de se tornarem tão devastadores como qualquer outro ser humano. Eu sou artista e minha cabeça funciona como a cabeça de um artista. Eu sou makuxi de Roraima mas sou do mundo, levo a aldeia mais longe e trago lá parte do mundo aos que nunca saíram. Nunca saíram por opção, ou condição, por resistência ou falta de coragem e tem inclusive os que não querem saber de nada disso e eles estão certos em suas certezas. Tem quem queira e se interesse, pois antes de tudo devemos entender que cada indivíduo sabe se colocar no mundo, sabe o que quer e o que não quer. Existem muitos indígenas talentosos, mas enquanto artista observo estendendo minha análise não só para o indígena mas para todo e qualquer talento que não esteja, por qualquer razão, em sintonia mais evidente com a política. Acho que arte deveria ser mais política que cultura e entendo que uma está na outra. Que elas dialogam mas ambas logo partem em suas definições se os operadores não a tratam com foco e destreza. Queremos arte transformadora ou queremos entretenimento? Queremos paisagens ou consciências? Essa foi a minha forma de me colocar no mundo. Na arte, meu traço é 10%, talvez, o restante são habilidades de comunicação, capacidade de liderança, disciplina, diálogo, respeito, doação e exposição por meio de mídias conjugadas com bom reforço da literatura. Como artista tudo para mim é substância. Não posso de forma alguma ser taxativo, ser conclusivo e muito menos tender ao radicalismo me fechando em mim mesmo sendo eu fruto de minhas escolhas. Eu espero mais ajudar que obstruir, abrir novos fluxos para o diálogo que talvez nunca aconteça. Acredito estar colaborando para mais perto trazer o outro, e, estando eles frente à frente digam mesmo no silêncio o que nunca foi dito e o futuro aconteça e seja bom para ambos.