A DESPEDIDA DA VACA


Não sei exato como mas sempre me via só no caminho para a escola. Só nunca estive mas me sentia quando o gado estava lá, no caminho do futuro. Ou ia antes ou ficava para trás e no campo verdinho ou já bem seco estava o gado sempre a mastigar mas nunca distraído. O gado estava lá antes de eu nascer e eu nasci intruso em minha terra negada. No caminho da escola eu via a vaca mansa, braba. Ela podia pois era a dona do leite e o leite então estava em minha barriga pois eu ia para a escola. Eu surgia de dentro do caimbezal e ainda busco surgir como naquela época. Eu ainda não sabia ficar invisível como nunca saberei e elas levantavam as cabeças e eu baixava a minha. Eu via suas línguas sempre úmidas a lamber meu medo e vendo aquilo deslizava de pavor naquela baba. Elas me chifravam com o olhar e eu desejava ser aquela garça branca que sempre estava perto delas sem nunca ser importunado. Mas eu não era, eu era o índio curumim e o gado tinha uma cisma comigo ou eu é que tinha uma cisma com aqueles bichos enigmáticos. Eu caminhava lento ou rápido até correndo e meus olhos procuram correr antes de mim para logo chegarem em um ponto seguro e resgatarem o resto de meu corpo-espírito. Foi assim que passei manhãs inteiras trepado no alto das árvores. Lá ficava até que o gado descesse para o bebedouro e eu descesse da árvore para tentar chegar à escola ou voltar pra casa para ter a minha surra por ser um covarde medroso e mentiroso. Não era medroso e resolvi não chorar nunca mais e nem ter mais medo das vacas mas outros sentimentos. Por vezes eu perdi aula e fiquei horas a admirar com medo e fascínio esse bicho enigmático. Eu optei por fim deixar de comer sua carne. Essa obra é um pouco disso, a despedida da vaca de minha vida. É uma despedida boba, uma mudança solene algo somente como uma troca de pasto para que ela crie melhor nossos filhos. Mudança para que me alimente melhor de sua metamorfose me deixando mais sagrado, menos sangrado, um Deus mais engraçado.