BABILÔNIAS


BABILÔNIAS

“estamos atolados até ao pescoço na colonialidade”
Ailton Krenak

Começo com uma frase do txai Ailton Krenak sobre o assunto da hora. São tantas as coisas que queria abordar nesse texto que começo com essa frase nos convidando a imaginar a cena de alguns poucos viventes que conseguem boiar e dar um respiro rápido para poder ver e sentir como é lá fora dos efeitos da colonização.
Estar lá, falar, trabalhar, agir e agenciar de lá, seria o ideal para que enfim pudéssemos sonhar em decolonizar o nosso mundo. Mas do que mesmo estamos tratando? De uma maneira simples quero colocar que, do modo em que vivemos, nesse novo arranjo sedimentar das culturas, estamos soterrados totalmente e não apenas até o pescoço.
Em um comparativo com a vida prática, estamos sendo pouco a pouco sufocados por algo forte, denso, opressor e que não entra ar. Seria a cobertura colonial sobre nós, todas as sociedades que ainda permanecem definidas em suas culturas no hoje contemporâneo.
Abaixo dessa camada estamos nós ainda vivos sendo nutridos pelo que ainda resta do que ficou conosco soterrado sob a densa camada colonial. Então, estamos com pouco tempo de vida. É de se perceber que, matematicamente, nossos recursos chegarão ao fim uma hora, o nosso ar. E, se não conseguirmos nesse tempo furar buracos nesse teto para tomarmos fôlego, não seguiremos no mundo.
Então, abaixo, sob pressão atômica viramos outro tipo de petróleo, serviremos de energia à engrenagem e conclui-se a colonização.
Voltamos à ideia dos buracos, esta que é também uma ilustração do Ailton Krenak para o que seriam esses lampejos de ideias e excitações sobre a decolonialidade. Seria furar pequenos buracos nesse muro intransponível e assim flertar com o outro lado, o antes colonial, a liberdade que deveria haver antes de tudo isso.
Aqui eu vou botar mais uma questão para os pensadores. Para o caso de conseguirmos sair dos efeitos da colonialidade, em tese, temos dois sentidos a seguir. O primeiro talvez seria a ideia de retorno. Voltamos então para onde estávamos antes. A segunda seria tomar um rumo que nos levasse a algo bem diferente do que é a colonização. Anote sobre a segunda opção.
Parece razoável até aqui a este ponto. Portanto convido a voltar nas ideias. Suponhamos que conseguimos boiar, nadar para o continente e deixar para trás toda a colonialidade, o passo seguinte seria voltar a ser como antes. O detalhe é que após acordarmos, soterrados pela colonização, todo o nosso referencial vem dessa condição, ou seja, nós não teríamos mais as estruturas para se viver como tal. Uma por não saber como se viviam antes, outra por não termos mesmo condições de nos reestabelecermos nas relações meios sociais e cósmicos.
Desde a chegada dos navios até hoje quando se capturam os últimos “selvagens” estamos engrossando a coluna definitiva da colonização? Uma vez processo próprio para onde vai a colonização depois de nós? Pode haver essa ruptura na memória? Sim, pois memória é algo que precisa de estruturas. De imediato, por hora, nos foge a primeira alternativa.
Então partimos para a segunda alternativa, qual seria, a sociedade alternativa. Caímos então na aventura de uma outra possível babilônia visto que todos os outros termos e experiências de relações sociais já tenham sido vividas. Algumas experiências conseguiram sobreviver por algum tempo mas as grandes questões universais permanecem desafiando o romance. Visto que a colonização vem da Europa, de lá também vem outras formas de viver e se relacionar como o mundo e com os meios, mas cabe salientar que falamos deste lugar de fala e que aqui o caso é específico.
Para pensarmos em decolonização no Brasil é preciso que se pense seu fim no mundo todo pois essa deve ser a observação clarividente de quem pensa decolonização, cultura e contemporaneidade.
Aqui entramos um pouco mais em complexidade quando puxamos o assunto para o lugar da fala e o lugar da escuta. Eu sou indígena e como agente de representação a decolonização para mim deve querer dizer algo específico. Na representação da invasão eu sou o remanescente do nativo. Hoje, no meu grupo de vida há remanescente dos invasores e para eles a decolonização deve dizer outra coisa.
A decolonização deve dizer algo específico para a população negra do Brasil e do mundo. Essa complexidade se amplia quando a colonialidade é vista ou discutida por pessoas em processos de formação de autoidentidade entre outros gêneros.
Começamos a perceber que a decolonialidade talvez exija uma transferência para outra matriz e pensá-la seria esse o primeiro passo no complexo sistema de “higienização” daquilo que será transplantado para outro ambiente – pós-colonial? O que será poupado da colonialidade? Essa ideia do transplante vem com uma fala minha, a questão de pequenas lavagens cerebrais reversas, que seria um campo limpo no cérebro para instalar as bases da decolonialidade. Isso parte também de um choque que ás vezes digo: não gosto de gente, ou, o ser humano é imundo. São criações de tensões, faíscas para despertar estranhamentos e testar as teses.
Percebemos que estamos diante de questões centrais da vida social quando falamos em decolonialidade. Na imagem do retorno também há tragédia; guerra e violência são vistos em outros contextos. A dor do deslocamento, do desmembramento, do acordar individual e coletivo deve ser o primeiro sintoma para a sequência de despertares. Se o despertar for geral veremo-nos todos conectados e essa seria a cultura universal.
Assim, como vimos, vamos precisar portanto de um outro terreno para ocupar. Esse outro terreno é o que está entre o voltar e a já tentada, e ainda resistente, sociedade alternativa.
Há uma via, a que para muitos de nós ainda é o sentido. Se há os buracos minúsculos no teto e no muro, há a ligação com o céu, com o infinito e portanto há canais abertos. Deve vir desse ambiente, o universo, como sempre veio, o resgate que a mim mesmo já foi prometido. Nesse ponto encontramos de novo os personagens que conseguiram furar ou manter abertos esses buracos. Contamos ainda com esse ambiente provedor, o imaginário, a fé, o afeto profundo por algo além da matéria, dos sentidos conhecidos e das esferas humanas.
Eles existem, vivem sob os efeitos da colonialidade mas conseguem transpor e ver aléns. Essas “idas” do lado de lá têm sido possíveis dentro de uma perspectiva que, para a nossa compreensão, podem ser chamadas de práticas eternas. Práticas eternas seriam ideias de conexões xamânicas, astrais, sobrenaturais para ciência; a capacidade de ser percebido e perceber o universo.
São eternas pois não tem data e não deve mudar nunca pois são básicas. Para se manter uma prática universal é necessário muita disciplina, renúncia, até hierarquia, acreditem. Percebam que entramos para o campo de outros termos e acho que já posso falar de poder. Essas coisas que por certo já existiam aos seus modos para suas aplicações antes da chegada dos navios. Rituais, o uso das medicinas das plantas, a autonomia de ir direto para a ideia de céu.
Me perdi e fui muito para longe nisso mas uma das questões centrais é a necessidade de termos parâmetros para dimensionar a colonialidade. Na camada de soterramento os nativos, ditos indígenas estão amassados sobre suas memórias e resistir é o terreno provisório antes da volta para casa. Talvez os indígenas tenham essa memória de casa e olhando para o céu retornam por teimosia acreditando que ele não deva cair mais uma vez.