Abril indígena 2020 – Respondeu Regina Trindade


Querido Jaider Esbell,

Saudações aqui do outro lado destas tantas águas.

Que alegria receber as suas palavras! Gratidão pela dupla celebração, VIDA e aniversário!
Que preciosidade receber a sua carta nesta semana, um ano depois de nos conhecermos, aqui nos alpes franceses. Exatamente um ano depois da sua vinda a Grenoble (9ª etapa das 13 cidades europeias da turnê “Voix et vision autochtones du Brésil” com a Daiara e a Fernanda). Para mim, foi um momento muito intenso e exigente, tanto pela minha implicação na co-organização da turnê, na programação de Grenoble, como foi intenso e forte o encontro com vocês três. Guardo carinho especial e respeito muito grande por cada um de vocês. Ocasião em que tive a oportunidade de conhecer a Alba, outro belo encontro.

Hoje é muito interessante essa oportunidade que você me traz de olhar para esses momentos e perceber as conexões atemporais que foram tecidas. Olhá-los num outro abril, atualizar nesta presente primavera e neste futuro suspenso a ser desenhado. Penso aqui, particularmente, no Ailton Krenak, que nos ajudou, a mim e a Rita, a tecer conexões entre mundos pela arte ativismo, ligando a programação de Grenoble com a Mostra Ameríndia do Cinema Indígena em Lisboa. Abracei esta oportunidade de “fluirmos com novas janelas de interações das redes”. Quanta gratidão sinto, pelos aprendizados e possibilidades de atuarmos para a abertura de alianças em rede, para divulgar as idéias no campo das artes e do pensamento!

Claro que aceito este convite para teimar positivamente, agora mais que necessário. Teimar em ser feliz, teimar nas atualizações de sentidos e teimar para que as mudanças aconteçam. Teimosia boa de se reinventar e de tecer ArteVida.

Então, por aqui vou transicionando, passando de neve derretendo-se à força de águas que ressurgem; fluindo-me e tentando entender um pouco de tudo isso. Mas ainda é imensidão para mim. Ainda não deu pra chover, pois os tempos andam atipicamente secos.
Tenho pensando bastante em você e na potência do seu trabalho, na Arte Indígena Contemporânea. Quanto temos a aprender com os povos indígenas! À distância, vou acompanhando como posso seu processo criativo, seu viver criando. Admiro, parabenizo! Dialogaremos mais sobre essas tantas águas que estão rolando.

Aqui na França vamos encerrando nosso 26° entardecer em tempos de confinamento em casa e com isolamento social. As medidas são mais severas que aí no Brasil. Foi mantido aberto só o comércio de primeiras necessidades, direito de sair de casa apenas para certos trabalhos e compras básicas, para prestar assintência a alguém, ou para uma hora diária de atividade física individual, contanto que não se afaste de casa num raio de 1 km. Eu saio pra uma caminhada todos os finais de tarde. Para sair, temos que assinar um atestado de derrogação declarando dia e horário de saída. Estamos sujeitos a fiscalização que podem resultar em multas caso não cumpramos as regras. Tudo indica que assim seguiremos pelo menos até o início de maio. O governo se pronunciará novamente na próxima segunda-feira.

Mas enquanto isso tudo acontece, parece que a terra volta a respirar melhor. Suspira?
Nos recolhemos em casa quando a primevera deu seus primeiros sinais e rebentos, desde então, o céu acorda azul todos os dias – Presente. O período vai exigindo um reaprender a brotar a alegria de dentro para fora, rompendo com a “louca lógica” do corre-corre urbano, que é sair do trabalho e festejar a chegada dos “florires” na euforia dos encontros agitados nos parques e festivais. Desta vez, todos em suas casas, quando as tem, temos a oportunidade de escutar os “brotares” de outras formas. Teimando em “primaverar” mesmo se o momento mundial tende a impor o contrário, um confinar. Tudo isso para lhe dizer que vejo neste momento a oportunidade de mudanças de foco e escutas.

Como em muitas outras cidades, aqui a poluição diminuiu, o consumo diminuiu. Pássaros ocupam cada dia mais os espaços. Voltamos a conviver com eles e o nosso cotidiano passa a ser ritmado pelos seus cantos… Adorei a sua lembrança das suas primas, cabras, descendo as montanhas. Elas devem estar achando ótimo ter menos presença de turistas, esportistas, ciclistas… circulando o tempo todo. A loucura delas deve estar mais intensa, vou rindo!

A Lua cheia, vista aqui das alturas da varanda do nosso apartamento, foi um outro presente desta semana. Desde que recebi sua carta, fui olhando para estas “telas-céu” e vi clarear muitas lembranças ao longo dos dias e noites, várias cenas e presenças fortes de vocês três aqui em Grenoble. Você, Daiara e Fernanda.

Recebi sua carta dia 07 de abril, exatamente um ano depois do encontro Cantos e pinturas corporais – Cultura indígena no Centre d’Art Contemporain Magasin des Horizons. DIA DE VOOS!
Sim, continuo firme no propósito de viver e sigo cuidando das minhas asas para que elas se mantenham fortes e longas, e ainda ouço os cantos. Lembro-me das palavras, escutei-as com o coração. Daqui deste meu lugar de confinamento, apartamento de onde vejo o alto das montanhas, os voos têm acontecido cotidianamente, permitindo algumas experimentações performáticas ou desenhos sistemáticos! Para mim, é tempo de residência artística de uma forma que eu ainda não tinha experimentado. Vou inventando. Vou conectando “teias-de-vida”.

No início do ano, voltei àquela cachoeira que fomos com Evélio, Daiara e Eric e tomamos o banho nas águas geladas. Tive um encontro com uma folha, impossível não me lembrar de vocês olhando aquelas águas. O rio estava com potência total, grande fluxo das águas que desciam das neves derretendo. Eu só me cabia no reverenciamento às forças da natureza! Desde então, tenho me interessado por lugares onde as águas surgem (exsurgências e ressurgências), onde (re)aparecem após terem infiltrado e percorrido leitos subterrâneos. Minhas explorações artísticas e conecções com a vida transitam por aí. Como já falei algumas vezes, continuo pensando nos possíveis locais de residência artística e encontros “extra-galeria”, onde eu possa acolher artistas indígenas por aqui. Quem sabe, para sua próxima vinda à Grenoble, com possível extensão à Normandie – França. Bom, esse formato precisa ser pensado, juntos, para o momento pertinente. Pois agora temos pela frente esses TEMPOS SUSPENSOS… e uma forma de projetar futuro próximo no viver o presente. Neste “sem se programar…”

Esta semana eu consegui encerrar um ciclo aberto em abril do ano passado. Não precisei anular atividades, consegui concluir os projetos que estavam em andamento e uma formação experimental que durou um ano. AGORA é para frente, num imaginar mundos. Quero aproveitar este mês para acompanhar a programação Abril Indígena online. É uma bela oportunidade para assistir as riquíssimas transmissões ao vivo, via internet.

Jaider, meu amigo, quero te agradecer por ter compartilhado comigo as “coisas do seu povo Macuxi” e os seus flashes recentes, que me alcançaram. Agora não sei mais quando poderei voltar para casa para ver minha família aí no Brasil, circular por aí novamente. Ninguém sabe dessas circulações… muito estranho …. mas agora é assim. Acolho profundamente os horizontes ancestrais que você me traz e que ajudam a fortalecer os laços, renovar meus engajamentos.

Mas neste momento estranho de pandemia, percebemos algumas brechas interessantes que podem ajudar as pessoas, a “humanidade que pensamos ser” (lembrando aqui das sábias provocações do Ailton Krenak), acordarem e assumirem mais suas partes de responsabilidades individuais; repensarem coletivamente o modelo ocidental devastador; reverem o consumismo desenfreado, as disjunções e incoerências da inventada economia, as desigualdades sociais, as intolerâncias e este tão desconectado modo de querer ser distante da natureza… Enfim, como vocês, povos indígenas, vêm alertando a tempos, existem outros possíveis. Já é mais do que hora de escutar.

Estas últimas semanas, vimos em pouquíssimo tempo várias cidades aqui da França, inclusive em Caen, como Solange me contou, alojaram muitos migrantes e moradores de rua, até liberando apartamentos desocupados. Agora já sabemos que é possível, existem soluções!
Neste momento que vou chegando ao final desta carta, vejo uma mensagem que chega nos meus emails, vinda de um conjunto de ONGs e associações chamando para “responder juntos” à urgência social e ecológica. Iniciativas coletivas que pedem medidas radicais, sugerindo que a sociedade se dê a oportunidade histórica de reinventar o sistema para que ele seja mais justo, ecológico e solidário, deixando de beneficiar os mais privilegiados e as indústrias poluidoras.

Por ser um outro abril, talvez seja momento por aqui de voltar a disponibilizar e ativar sua CARTA DOS POVOS INDÍGENAS AO CAPITALISMO, para que esta sua leitura poética, profética, possa circular no mundo e chegar a seus destinatários. Contribuir para ecoar a voz da arte!
Jaider, agora é minha vez de agradecer pela escuta nesta temporalidade das cartas. Eu também reforço que estou por aqui e quando quiser, ligue-me ou escreva-me. Cuide-se bem e cuide dos seus. Sigamos juntos!

Um forte pensamento carinhoso e amigável aqui de Grenoble, quando percebo que os pássaros lá fora tecem conversas já quase no final de noite. Já era um outro dia, o 12 de abril 2020. Regina Trindade.