Abril indígena 2020 – Ontem é hoje, decido!


Regina Trindade querida!

Saúdo você em dose dupla, pela vida que tens e pelo seu aniversário PARABÉNS.

Lembro que ano passado passamos juntos essa onda boa de natividades pois o meu é dia 27 de março e eu estava em Laiden onde Fernanda Kaingang faz doutorado. Arianos teimam com tudo. Te escrevo para te convidar a teimar positivamente junto comigo (risos). Tenho pensado nas minhas primas, as cabras selvagens que vivem aí nessas montanhas e que agora descem para a cidade para passear, as loucas.

Grenoble, do alto é linda! Tudo do alto é mais lindo. Será, Regina? Como é quando você está em forma de chuva, ou neve? Como é? Foi o meu primeiro período mais longo trabalhando pela Europa e que bom que tínhamos flores. Lhe conhecer nessa ocasião foi um de meus presentes eternos, para todas as vidas, gratidão! Estenda a minha gratidão a Erik e sua bebê. Claro que vamos trabalhar mais. Por isso essa carta é um registro de vida para a vida.

Esse ano eu não vou comer açúcar industrial. Dieta. Gente também está fora do meu cardápio (risos). Estou monge esse ano todo. Hei de suportar. Para o bem do mundo, vou. Ao menos para meu mundo (risos). Pensando bem eu mesmo vou fazer um bolo de macaxeira ou milho, com mel. Acho que vou virar boleiro, é mesmo tom de despedida (risos). Trigo só do agronegócio, melhor evitar ao máximo.

Ando inventando na cozinha. Sempre que vou fazer algo, imagino que é arte e no fim dá tudo certo pois arte não erra nunca. Se ficar venenoso e eu morrer, morri feliz, morri em performance (risos). Saí no dia do meu aniversário da dieta pesada que comecei no final de 2019.

Encerrei a dieta com um ritual de ayahuasca aqui mesmo no pátio da Galeria. Queria esquecer tudo isso. Foi bem suave, tranquilo e bom. Eu estava só com o Enoque, meu irmão Makuxi. Fizemos o fogo e eu virei a noite toda, cantei, senti a força linda. Só vi as coisas boas. Como sempre, tive bons merecimentos. Hoje vou tomar de novo pois é lua cheia e eu sou um lobo (risos), ao menos uma raposinha sou então vou uivar.

Estava ficando muito magro e a crise de agora exige agora uma gordurinha para aumentar a imunidade. Uma das coisas que me metem medo, confesso, é a obesidade. Coisa de processo artístico, essas maluquices que bem sabes como é. Estava num ritmo tão bom! Meu corpo imerso em minha obra, mas ainda está, claro.

Estava bem nos exercícios físicos me deixando bem sarado para as performances corporais na bienal de São Paulo, Pinacoteca e toda uma agenda que foi avassaladoramente adiada. Eu descia para o rio Cauamé para exercícios n’água. Tem uma praia aqui perto. Chama-se Praia da Polar. É referência a uma famosa marca de cerveja da Venezuela que nem sei se ainda fabricam. Uma praia popular. Lá tem um restaurante com um peixe frito que é muito bom.

Não fiquei triste não com os cancelamentos. Estava viajando tanto o ano passado. Me alegrou o fato que ficar mais um tempo aqui e curtir a galeria, a família e as comunidades. Agora só ouço os aviões passando acima. Não estava mais aguentando viver dentro de avião. Mas eu gostava sim, sou um tipo viajante (risos).

Como indígenas a gente vive se adaptando e como artista evito tédio e rotinas. Ainda acho que a felicidade a gente mesmo é quem inventa, e dá certo sempre. Agora estamos trabalhando com transmissão ao vivo pela internet. As lives funcionam bem e devem melhorar os sistemas pois aquela vida boa de aglomeração; vai ser possível mais não.

E pensar que trabalhamos juntos nesses projetos exatamente de advertir as pessoas para o que estava muito próximo, o grande caos. Foi então que a coisa veio chegando mais perto; digo essas coisas de que nossos pajés sempre falaram e a gente sempre achou que ia demorar mais um pouco.
Mas o fato é que chegou. Apareceu a cabeça da grande peste e veja como é que o céu começou a desabar. Um bichinho invisível, um vírus global.

E elas, as pestes gerais, vêm com tudo minha amiga. Isso não é nada animador. Como artistas devemos falar sobre com sabedoria. Mas haverá os que verão sua passagem inteira e bons artistas estão na lista do que ficam vivos! Viva! Ainda bem que somos artistas sérios (risos). Artistas podem tudo até adiar o fim do mundo, já diz o nosso querido Ailton Krenak, necessário mais do que nunca. Rita tentou que eu fosse, mas algo me disse que não daria certo e Portugal ficou para o talvez. Não tenho falado com ela. Espero que esteja bem e que de mim não guarde maus sentimentos.

Eu lhe escrevo esta carta pelo motivo que só a pessoas grandiosas se devem confiar segredos leves. Tenho profundo carinho por um monte de gente, e esse nosso contexto a Daiara especialmente é uma. Ela está se cuidando em Brasília. Como é uma mulher muito sensível estou também lhe acompanhando como posso, virtualmente. Fico feliz por sua confiança em mim. Eu amo aquele ser.

É que eu não tenho medo da morte. Sofrer é diferente, ninguém merece. Ou será que realmente merecemos? Bom, o fato é que o medo contagia e muito medo faz abrir portais antigos que foram lacrados, enfim… Devemos mantê-lo longe para que não nos alcance mais esse contágio.
Não sei pra você, para o meu povo, manter um certo distanciamento físico é super normal. Nossa cultura é assim. Nós na aldeia, não vivemos de paparicos. O máximo de contato é numa relação muito íntima. A vida e a dinâmica das crianças, mulheres irmãs solteiras se catam ou neta-vó se acarinham.

Somos bem ocidentais, somos assim. Visitas só avisadas ou se se chega de surpresa se grita de longe: com licença, eu posso chegar? Então, o significado do teu nome, como sabes, é Rainha Absoluta. E seu sobrenome Trindade é um caminho para a santíssima. Não dá pra fugir facilmente do cristianismo. Sim, acredito que Jesus viveu iluminado. Ele e sua mãe foram pessoas boas. Também acredito em “Deus” pois vi seres superiores.

Trindade, tríade, trio, triangular também é como os nossos defensores-ofensivos trabalham, digo, essas são coisas do meu povo Makuxi. Triângulo, perfeito equilíbrio mais que quadrado ou esfera. Pirâmide. Nossos Kanaimés geralmente atacam de três. Um distrai a vítima, um executa e o outro fica vigiando tudo.

Minha amiga não quero tomar muito teu precioso tempo. Queria apenas lhe partilhar banalidades, flashes mais recentes da minha vida que alcança a tua. Sabes que aguardo vocês aqui. Ainda avisei que viessem naquela ocasião. Agora é tudo longa espera. Planos devem sim serem feitos, assim como sonhos refeitos.

Torço para que essas letras lhe traduzam bons sentimentos. Dizer que estou aqui também para as horas pesadas. Não hesite em me participar e por favor me diga que estás forte. Me diga que estás firme no propósito de viver. Me diga que está no ritmo da revolução, que queres sim a elevação. Lembra que te disse que temos asas, que elas são fortes e longas e que devemos usá-las.

Lembra que tens um povo, que teus ancestrais estão vivos a te olhar. És mesmo Regina a Rainha absoluta. Veja essa sua cor de rocha, suave e cheia de ferro. És indígena e todos nós juntos ninguém conseguirá derrotar.

Eu vou continuar por aqui. Estou em isolamento, mas mainha cabeça ainda está boa. Tenho uma floresta em minha frente, pra mim sempre é mais fácil, parece. Queria terminar nossa carta com outra carta que escrevi aos bancos. Nossos verdadeiros inimigos são eles, os bancos. Se eles não derem dinheiro pra gente, são eles que devem morrer (risos).

Isso foi em Genebra, você não estava com a gente. Você esteve comigo e com a Claudinha naqueles episódios hilários agora que tudo passou. Também não falei mais com ela. Espero que esteja bem. Por fim, são tantas gentes e uma carta é isso, um carrossel sem fim de memórias afins. Me liga quando sentir vontade e mesmo escreva, pois, a boa poesia é posta assim para fora, no calor das emoções. A luta tá linda e todos somos vencedores!

CARTA DOS POVOS INDÍGENAS AO CAPITALISMO.
Eis que estamos vivendo agora, todos nós, o ápice do tempo antropoceno. Se não há futuro para nós, não haverá futuro para ninguém. Esse tempo presente é a última chance que temos para celebrar a vida, a vida com dignidade para todos; homens, animais, minerais, espíritos. Essa carta tem a intenção de convidar toda a humanidade para pensarmos juntos o futuro comum de nossas próximas gerações e isso é mesmo urgente. Eu de minha parte represento, em uma leitura poética, profética, a última ligação dos seres humanos com a essência da natureza, ou seja, a vida em sua origem. Eu também represento o pensamento dos anciãos de toda a terra e não devemos suportar por vocês essa grande guerra, sozinhos. Eu vou além pois posso ouvir a voz dos que antes viveram e que nos alertaram que a arte é a nossa grande chance de falar de um modo mais verdadeiro. Eu venho de lá, dos cantos mais remotos das florestas virgens. É de lá que venho, da grande Amazônia, de onde os “selvagens” correm para todos os lados sem entender de onde vem o fim do mundo. O fato é que eles sabem, pois podem ver a catástrofe por meio de seus xamãs. Com muita súplica nos convidam a segurar o céu sobre nossas cabeças com o melhor de nossa sabedoria, a sensatez. Lá, nas florestas virgens, as crianças perdem suas mães, seus pais, irmãos e ficam sozinhas morrendo lentamente vagando envenenadas com o lixo da modernidade por todos os lados. O lixo da modernidade que vocês, os homens donos dos bancos, donos do poder que é o dinheiro alimentam com suas poderosas estruturas de destruição que nunca param. Todo o ouro que antes e ainda mais agora são retirados da terra podem hoje formar um grande espelho e lhes mostrar. O brilho dos diamantes, da prata, forma agora um grande espelho onde pode mostrar para quem pode ver os rastros de sangue que a ganância deixa por onde passa. Sabemos que é muito simples retroceder. Limpar a natureza de todo lixo industrial, limpar o espírito dos homens desse sentimento morto, frio e insensível que esta oculto nestes prédios tão distantes de nossa realidade. Eu posso ser você nesse caminho da vida mas não podemos ser natureza uma vez que a negamos e ficamos cada vez mais distantes. Ouvir o clamor mundial por justiça social. Aceitar de uma vez por todas que o aquecimento global é uma realidade pois as águas não mentem. O vento não mente, o clima não mente. Falamos sim pelos elementos da natureza já que nós meramente humanos não temos mais direito a nossa própria voz. Que haja sensatez e muito mais tolerância. Que considerem tecnicamente a possibilidade de investir na estrutura universal pois o amor de vocês foi investido na guerra e a felicidade de vocês está em fazer as pessoas sofrerem em todos os cantos. Não há outro modo de viver por mais que se tenha dinheiro. Devemos sim, aquecer a terra com amor, esse nobre valor desvalorizado. Devemos sim cobrar por justiça e entender que a educação pode mudar o rumo e apontar outro prumo pra que atravessemos o mundo e sigamos vitoriosos deixando tesouros de paz e harmonia, uma forma simples e pura de sermos gratos pelo universo que tudo nos deu e que está muito perto de tudo nos tirar. Somos iguais em tudo e por tudo digo que não queremos, que não merecemos ficar com o lado pobre desta riqueza comum. Aqui deixo mais uma vez saber que esta voz é uma voz da arte que me criou para andar no mundo mostrando de todas as formas o invisível, isso que não tá na matéria mas que a sustenta. Essa carta é uma representação, eu cá como povo indígena e você aí como o capitalismo cruel e sem coração. Trago um pouco de luz para você. É vermelho nosso sangue, azul a nossa água e não há mais tempo para tanto sofrimento. Lutem conosco, vocês têm poder, assim como nós.
Texto: Jaider Esbell “Carta dos povos indígenas para o capitalismo”, entregue em performance em frente ao banco UBS em Genebra. Este é um dos principais bancos investidores no agronegócio do Brasil. Ação coletiva realizada dia 03.04.19.

Gratidão Regina pela escuta, te espero sem ansiedade (risos)
Seu amigo Makuxi Jaider Esbell.

19 de abril de um mundo branco ou só lua nova mesmo desse calendário universal anterior a tudo isso que vai passar e vai nos lavar!