A ARTE INDÍGENA CONTEMPORÂNEA COMO ARMADILHA PARA ARMADILHAS


Antes de quaisquer outras questões eu quero destacar o caráter de legitimidade deste ensaio. Penso e até espero que lhe deva ser considerado importante por todos aqueles que passeiam a cerca do termo, ou da negação do termo ou mesmo em sua exaltação. Escrever sobre o assunto é exponencialmente uma agentividade legítima exatamente daqui desta posição; eu o vivente, artista, indígena e autônomo.
Durante uma década inteira tenho me dedicado integralmente a pensar as artes que faço como partes de um sistema político e estratégico amplo, de limites indefinidos intencionalmente para que uma hora pudesse ser posto em ambiente de equivalência aos todos, para de fato suscitarem possibilidades reais de diálogos com os já difundidos movimentos.
Eu não posso desde onde estou, afirmar ou negar absolutamente nada, tampouco a intenção da minha escrita está para além das fronteiras de suas próprias investidas. Eu não sou titular de nenhuma cátedra em uma influente academia, mas ao passar dos anos eu pude perceber que esses espaços já existem e que já constroem teorias ao mesmo tempo em que as disseminam segundo suas próprias estruturas e motivações.
A gente, digo eu, nasço num ambiente fértil para as criatividades, ou para as inanições se eu tivesse cedido aos convites ao auto apagamento. Eu venho a esse mundo já como alguém desvirtuado. Eu considero usar a palavra desvirtuado com ressalvas e licenças pois nesse primeiro plano eu não posso deixar de dar como referência a chegada e ação dos invasores europeus sobre as dinâmicas próprias dos povos autóctones destas terras hoje re-reinvidicadas.
Pois então vamos pensar um pouco sobre o tema deste texto. Armadilhas para armadilhas. Sistemas de poder. Conceitos coloniais. Práticas mescladas de valores e referências. Identidade e autoconsciência. Função forma e conteúdo. A questão do território e territorialidade vista deste ponto aqui, repito: eu vivente, um artista de ascendência Makuxi, povo de amplo movimento sócio interativo, político expansionista e estético marcador para bem antes da chegada dos invasores “brancos”, ponto que queria também marcar.
Quando se nasce onde e como eu nasci, não se tem muitas escolhas senão buscar fazer-se em si mesmo e isso pressupõe negar não exatamente quem se é mas aquilo que queriam que você fosse. A primeira teimosia vem mesmo dentro de casa. A forma como fui educado não foi nem de perto a primeira violência. É que meu corpo não me pertence sem que eu o veja com um alongamento de acúmulos históricos. A violência é uma energia propagada de alcance praticamente não rastreável, mas é.
A gente precisa uma hora ampliar as leituras de mundos para minimamente ser justo com aquilo ou aquele que a gente pesquisa. Imagine os efeitos de quinhentos anos sobre uma população que assimila e desassimila o tempo todo.
Não pude me deter em questionar os modos pelos quais me foi imposta a ideia de educação. A revolta que hoje entendo melhor não era coisa de alguns anos, mas séculos e em um outro plano, milênios de distúrbios emocionais não tratados que se acumulam e se projetam sempre com mais eficiência nos modelos gerais oficiais e outras forças das próprias épocas.
Eu nasci no final do regime ditatorial. De um certo modo eu fui um privilegiado pois nasci no berço da violência, assim pude ver a sua cara como a primeira paisagem. Como segunda paisagem eu pude formar em mim mesmo mundos a partir de fragmentos. Uma narrativa aparentemente engessada, redonda e limitada me foi apresentada em uma hora dessas onde os fatores todos se reúnem para dar fluxo a outros códigos genéticos, vamos dizer assim.
Ouvir sobre a grande árvore me levou a mundos distantes. Era noite de verão, céu sem lua e eu senti a via láctea. Passei a olhar todos os tipos de árvores e a olhar todos os tipos de rastros, revirar pedras, entrar em fendas escacaviando tudo. Certamente nada de mais teria acontecido na minha vida se a história tivesse sido a mim apresentada de uma outra forma, por outro alguém e em outro momento.
Mas foi onde hoje é a nossa terra, a Terra indígena Raposa Serra do Sol. Quem me falou foi o meu avô exímio contador de estórias lúdicas e fantásticas, mas ele fora um escravo nas fazendas dos estranhos que usurparam nosso mundo com a melhor das intenções deles e para eles.
Eu não podia imaginar que aquele cenário era cenário, que o couro de vaca que estávamos deitado em cima eram as estampas da colonização e da guerra pelas terras que então já estávamos como estranhos pois por ordem nacional não nos pertenciam como ainda continua assim até hoje e me parece que será para sempre assim.
– Há muito tempo existiu por aqui uma grande árvore. Ela tinha todos os tipos de frutas…
Como eu poderia achar normal ter de ir para a escola e não poder acompanhar meus próprios parentes no trabalho comunitário desfrutando do verdadeiro saber que era a nossa língua e nossas tradições? Com quem eu poderia dialogar sobre as grandes questões que me assolavam se minhas professoras só sabiam alfabetizar com maestria e não tinham tempo para me ver aéreo, pois estavam aéreas pensando no importo de renda. Cada um em um mundo e eu no outro mundo mais longe rabiscava imaginários enquanto a turma chorava para aprender a escrever o próprio nome.
Aquilo hoje posso bem dizer que já era a arte me alcançando. E foi nesse ritmo que me mantive esses anos todos. Um constante movimento de cruzar sentidos andando por uma margem muito estreita, esses lugares invisíveis por onde só andam os mais astuciosos exploradores.
Me fiz explorador em um lugar onde tudo se explorava. Eu tive que negociar com o medo, com a timidez, com a tristeza, com a solidão, com a apatia. Por lá exploravam a terra não mais para agricultura familiar comunitária. Se explorava a terra para grandes companhias. Agricultura de monocultura. Exploravam a terra para retirar minérios, madeira, terra para grandes fazendas de gado que a gente não via para onde ia tamanho rebanho.
Exploravam a terra para caçar mãos de obra. Exploravam a terra para disseminar a miscigenação aos modos perversos desde enganações e promessas a estupros violentos nos campos longínquos de onde imaginavam nunca alguém poder ser capaz de revelar.
Assim os sistemas, as artimanhas, as estratégias, as políticas públicas oficiais e não oficiais de genocídios foram se estabelecendo. Eu pude acompanhar todo o processo desde onde estava, como disse tendo o privilégio de nascer onde nasci e vejam bem, por poder usufruir do sistema cristão que meus pais já nasceram dentro. A igreja ainda não havia declarado guerra ao estado. E relação deles ainda era complementar.
Como um menino na escola de catequese eu pude explorar a igreja, andar com as madres por boa parte da minha própria terra, ver e sentir como a igreja os tratava e como era esse trato deles com o estado, as forças constituídas. Eu posso dizer com mais segurança hoje que o que eu fazia era uma pesquisa minuciosa sobre minha própria origem. Sobretudo posso dizer que se tratava portanto de uma pesquisa sobre meu próprio destino pois de todas as partes da sociedade eu tinha curiosidade desproporcional para minha idade ou realidade.
Então por que é que eu digo que usar o termo Arte Indígena Contemporânea é antes de tudo uma estratégia? Talvez pelo fato de eu não conseguir dizer, fazer, mostrar e viver tudo o que acumulei de imaginação e visão por outros meios.
Eu não seria assim se tivesse me tornado um cientista, um padre, um militar, um garimpeiro, um fazendeiro, um servente, ou um professor. Eu não poderia talvez externalizar, dar vazão aos meus eus e aos outros se eu tivesse me tornado um pai de família, um trabalhador comum assalariado. Certamente não teria sido assim se eu não tivesse aberto a mão de todas essas possibilidades para ser unicamente artista.
E mesmo o termo artista pelo que se espera de um profissional desta área não poderia ir por tantos caminhos assim. Em mim está sendo assim, eu digo que sou artista, mas o que sou de fato?
Eu decidi assumir estas funções, me ocupar integralmente nisso e mesmo assim para poder chegar aqui eu precisei, por estratégia, percorrer caminhos convencionais como ter um emprego formal. Consegui um emprego via concurso público onde fiz carreira como auxiliar técnico numa empresa estatal de energia elétrica. Mesmo lá me pus a dar continuidade a minha pesquisa sobre sistemas, políticas e estratégias. Nesse tempo também pude fazer um curso superior. Fiz uma graduação e tentei seguir, mas não me deixaram. Assim pude ter introduções sobre metodologias cientificas e compreender um pouco os mecanismos com os quais a ciência se faz valer.
Voltando para o assunto maior, a arte indígena contemporânea, posso dizer que é um termo a mais no mundo dos termos. Mas, quando é trabalhado desse lado de cá, o eu sujeito, artista, indígena e autor, passa a ter legitimidade inquestionável. É armadilha para pegar armadilhas por diversas razões, sobretudo para o campo da autocrítica, autoanálise e autodesenvolvimento.
Talvez se espera discutir sobre tal arcabouço questões como se índio faz arte, artesanato ou artefato. Questionar usos e apropriações de ambos os lados. Discutir questões de autoria coletiva, a autonomia do artista ou mesmo obter parâmetros que digam quem pode ser considerado artista ou não entre os sujeitos indígenas. Talvez ir além a ponto de forçar limites e fronteiras que são tênues em muitos pontos como a legitimação de uma reivindicação autoidentitária ou a miscigenação ou a dupla identidade étnica quando os nativos se fundem com os afrodescentes.
Talvez ir mais além como ter um campo mais definido para alardear injustiças que não podem deixar ser mostradas como a desvantagem que temos enquanto povos originários sobre todos os demais grupos étnicos, inclusive em relação aos movimentos da população negra neste país e Américas, por exemplo.
É claro que lanço este ensaio aberto para o todo e gostaria que este material pudesse ser inserido nos conteúdos dos cursos de nível superior. Que estejam a lê-lo nas pós graduações, nos cursos de formação de professores e meios afins.
Temos hoje como identificar por meio de dúzias de sujeitos indígenas que se expressam abertamente para o grande público, que tratamos de fato de um sistema extremamente complexo de visibilização de pluralidades. Temos artistas de ambos os sexos que sinalizam para uma estratégia ainda pouco evidente. Talvez o que se trata seja de uma guinada transgeracional fenomemal e não modal. Não só pela idade dos sujeitos, mas pelo conteúdo, o teor de suas performances, de suas vozes e pelo crescente levante de artistas indígenas não binários, os sem gênero.
A questão do gênero, da radicalização, do aldeamento ou a falta dele, o domínio ou não das línguas maternas dos seus povos de origens são questões latentes que podem e dever ser acolhidas sempre em uma perspectiva construtiva. Não posso deixar de assinalar para a questão da autoria, da autonomia do fazer artístico como uma voz dissonante do meio comum sem deixar de sê-lo.
Da prática artística como composto de atos mais elevados. Como conjunto ritualístico mais que mítico chegando a pajelagem. Como prática xamânica, curativa e psicomedicinal. Como um conector para fatos históricos e como um disparador de sinapses para mundos que existem, mas não são como os que a gente tem acesso. Um artista não se desenvolve com imposições. As imposições violentas podem ser muito perigosas para as mentes sensíveis de artistas. Por fim não vou deixar de lembrar que em tudo há armadilhas e que nós, os indígenas, precisamos de uma armadilha para identificar armadilhas e quem sabe esta não seja exatamente a AIC – Arte Indígena Contemporânea, feita e contextualizada por seus autores próprios.