Exposição EPU-TÎTO – Artes e indígenas hoje – Textos da curadoria


Texto 01
VACAS NAS TERRAS DE MAKUNAIMA – De Malditas a Desejadas
Não houve bem tempo para o ritual. Correram, pegaram pimenta jikitaia na cuia e jogaram nos próprios olhos. Protegidos, foram ver as vacas que já lambiam freneticamente as roças sem cerca. Foi a primeira flechada. Bem no pescoço. Tombou a primeira vaca. Perplexidade e pavor [barulho]. Tombou o primeiro índio, do tiro do capataz, bem no miolo. O pássaro negro subiu numa corrente de ar e foi bem alto. De lá, viu todo o terreiro de Makunaina e gritou bem forte que foi ouvido por toda a imensidão. Acabara de chegar o novo tempo vindo do outro lado do mundo. Eram horríveis. Grandes, agressivas e vorazes. Esplêndidas, destemidas e belas. Eram as vacas nas terras de Makunaima. Foi um tempo onde todas as forças da cultura maior dos povos do lavrado se fizeram valer. A vaca chegou e nos reinventou com ela. A passagem foi extremamente agressiva. Foi memorialmente sangrenta. É bem recente a vaca lamber a mão do índio. A Coleção de 16 obras, contendo 9 telas de Jaider Esbell, 1 de Amazoner Okaba, 1 de Bartô, 1 de Carmézia Emiliano, 1 de Diogo Lima, 1 de Isaias Miliano, 1 de Luiz Matheus e 1 de Mário Flores Taurepang, é um marco na história da arte indígena contemporânea em Roraima. O título sugere ao expectador, segundo o idealizador Jaider Esbell, uma leitura pormenorizada da chegada do rebanho bovino, especialmente no território Makuxi. Extremamente conflitante e conflituoso, o processo gera uma mudança radical na vida do povo do lavrado e serras que reverbera ainda hoje. Fruto desse processo, Esbell, em 2011, ano de sua aparição na cena, convida os artistas acima citados a fazerem uma leitura desse narrativa, apresentando uma poética coletiva sobre o grande tema. Sendo todos artistas indígenas, inicia-se um estudo coletivo que vem com efeito revelador no campo prático. Essencialmente pintores, os artistas foram convidados a produzir ao menos uma obra que, no seu olhar, pudesse compor visualmente a ideia do encontro da vaca com o índio e sua vasta transitoriedade. Eis o resultado. Tecnicamente algo que salta do figurativo para a ideia de abstrato. Algo paralisante como é mesmo de ser o tema extremamente instigante. Longe de causar qualquer explicação, convidamos a um avistamento sobre a composição e a narrativa. Recorramos sem dúvida à oralidade. Antes, ressaltamos que todos os artistas dessa coleção tiverem ou tem uma vivência muito particular com o gado. Hoje ainda, povos indígenas começam a ter o gado adicionado a suas culturas. Mário Flores Taurepang é um exemplo. Por diversas razões, a coleção tem o peso maior em nosso marco. Tanta densidade a levou a ser exposta nos Estados Unidos em 2013. A coleção foi exibida como parte da proposta do curso Run to the forest (Corrida para a floresta) no Pitzer College, estado da Califórnia. O Curso foi uma proposição do artista Jaider Esbell ao atender um pedido daquela universidade, via Lêda Martins, para ministrar um curso sobre culturas, arte e Amazônia. Jaider Esbell apresenta 9 telas. A maior é a grande personagem, carregada de luzes e efeitos. Estarrece e causa encantamento. A vaca fêmea, o gênero. As demais obras são ideias de ilustrar as mais distintas sensações que tiveram os nativos quando do primeiro contato com o gado. Medo, pânico, horror, perplexidade, experiências xamânicas e extrasenssoriais. Bartô apresenta uma obra densa, cheia e clara. Pinta, compondo a paisagem, a vaca e o rosto do líder Makuxi e seu tio Jaci José de Sousa. Luiz Matheus é filho de Bartô e, com o pai, cresceu na linha de frente do movimento indígena. Jovem, habilidoso e sempre quase calado, Matheus surpreende com uma pintura sobre grilagem e títulos frios das fazendas na região. Carmézia Emiliano harmoniza com seu estilo naïf e sua energia feminina. Carmézia apresenta um índio segurando a corda que está laçada no pescoço da vaca. A cava é muito mansa, mas ambos se olham, índio e vaca, incrédulos. Diogo lima é altamente poético ao apresentar as vacas deitadas no capim do lavrado, à noite. É alta madrugada, a lua no meio do céu e o gado deitado rumina. Sugere um pouco de sossego, pois logo recomeçará o pisoteio. Amazoner Okaba pinta um paradoxo. Para o índio, a vaca é caça. Para o fazendeiro, o índio rouba a vaca. A cena da vaca flechada é central em todo o entendimento maior sobre cultura, invasão, ditadura, resistência e o que mais se puder ver nesta realidade. Mário Flores Taurepang pinta o que falamos, sobre suas experiências com o gado. O Povo Taurepang, ou Pemón, diferente dos Makuxi e Wapixana, se tornaram criadores de gado recentemente. A cena de Mário Flores mostra a paisagem típica da Gran Sabanna (Venezuela), as casas dos nativos e um touro solto sem cerca, compondo. Curiosa a proposta do Mário em desenhar um boi e não uma vaca, como parece uma ideia fixa do Jaider Esbell. Isaias Miliano é um artista que tem na escultura em madeira sua maior expressão. Para a mostra propôs uma peça de cedro doce, madeira nobre e rara da Amazônia, e fez uma escultura que remete a uma cabeça de vaca com seus longos chifres mirando firmemente o futuro. Amplo e contextual, o tema liga rapidamente ancestralidade e atualidades. A coleção está no acervo da Galeria Jaider Esbell em Boa Vista-RR.